A senhora C.
por Licínia Quitério
Conheço-a desde sempre, desde que eu era criança e ela uma jovem mulher, de gargalhadas frequentes e sonoras, loira, pobre, muito pobre, no tempo de haver muitos pobres, de vários e pesados trabalhos, de alguns filhos, minha vizinha, que o barraco onde vivia ficava num beco a abrir na minha rua.
Décadas me levaram para outra terra e à senhora C. para outro beco a abrir noutra rua. Quando regressei ao meu lugar primeiro, encontrei-a. Ficámos contentes, rimos ambas, eu com um sorriso largo, ela com a sua sonora gargalhada, a tratar-me por menina, eu já não loirita, ela ainda, fiel à sua matriz celta. Gostei de a ver, já sem o traço da penúria que dantes lhe coubera. Estava bem, os filhos criados, a viver numa casa a sério, modesta, mas com o conforto que ela nunca tivera. Passei a vê-la quase diariamente, na sua bica e bolinho, nós ambas no mesmo café, como está a menina, como está a senhora C. Vamos envelhecendo as duas, ela mais adiantada do que eu, sabe-se lá quem chegará primeiro.
Ultimamente não a encontro de boa saúde. A senhora C. está agora uma velha em banco de jardim, perdido o garbo que nem a pobreza fora capaz de lhe tirar, os cabelos loiros desalinhados, o olhar perdido sabe-se lá em que becos da sua distante memória. Ontem, à minha habitual saudação, respondeu com um leve aceno, sem menina, sem a gargalhada que sempre lhe nascia na garganta.
Nem calcula a senhora C. quanto me ensinou das desigualdades, das fronteiras cavadas entre becos e ruas, da pobreza extrema perto da minha casa, do muito que me fez ser o que sou, como sou, atenta agora ao regresso dos becos, noutros moldes, sendo os mesmos, de penúria e solidão. Ao menos que entre os que lá moram volte a haver senhoras C., com gargalhadas estridentes a esconjurar demónios.
A Metade de um Homem e A Tribo (em publicação) – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.